Em dia épico, o 4 de dezembro de 2024 entrou para a história do Brasil. É que o Modo de Fazer o Queijo Minas Artesanal foi incluso na seleta lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, da Unesco. Nenhum outro produto brasileiro recebeu tem este título, assim como nenhum outro queijo o tem. E para comemorar este grande feito, os mineiros Guilherme Aragão e Conrado Moreira acabam de lançar o livro Canastra – Queijos de Histórias, pela Bushido Produções. A obra apresenta a história do queijo até chegar nesta conquista. De inimigo da saúde pública, no século passado, às premiações internacionais de qualidade, o queijo mineiro ganhou fama e reconhecimento ao longo das últimas décadas.
Resultado de uma extensa pesquisa bibliográfica e iconográfica, o livro é dividido em três partes. “A obra oferece um panorama da produção de queijo no mundo e no Brasil, destacando sua identidade com os mineiros, em especial o queijo artesanal produzido na região da Serra da Canastra. É a história de gerações de famílias dedicadas à produção e distribuição de queijo”, comenta o autor Guilherme Aragão.
A primeira parte de Canastra – Queijos de Histórias apresenta a história do queijo no Brasil, intimamente ligada ao desenvolvimento da pecuária, cuja inserção no país veio a reboque da expansão da lavoura açucareira, já a partir de meados do século 16 e, posteriormente, durante o ciclo da mineração. Embora se beneficiasse da capilarização da bovinocultura pelo território, a produção de queijos era localizada e modesta, não tendo experimentado avanços até pelo menos a primeira metade do século 18, período em que a capitania de Minas Gerais fervilhava de gente e a fabricação encontrou condições mais adequadas de clima e altitude nas montanhas de Minas — por exemplo, na região do Serro e, um pouco mais tarde, nos arredores da Serra da Canastra. Em meio à abundância de ouro e à escassez de mantimentos, um queijo importado chegava a custar dezesseis oitavas de ouro, o equivalente a R$ 3.000,00 atuais.
O aumento demográfico e a diversificação econômica posterior ao esgotamento das minas propiciaram a ampliação da pecuária. O queijo foi gradualmente se inserindo no dia a dia mineiro, e já em meados do século 18 era produzido e consumido em vários cantos da capitania.
QUEM É REI NÃO PERDE A MAJESTADE
No apagar das luzes do século 19, findou o Império, mas o café continuou sendo a joia da coroa de exportação brasileira, e o queijo de Minas não perdeu a majestade. Minas Gerais seguiu obtendo destaque na pecuária leiteira, e o Estado manteve o posto de um dos mais importantes do país, econômica e culturalmente. A dobradinha do café com leite – e queijo – deu até nome ao período das três primeiras décadas do século passado, durante as quais representantes das oligarquias paulistas e mineiras se alternavam no cargo de presidente do Brasil. Em Feitiço da Vila, um dos maiores clássicos de sua vasta obra, Noel Rosa canta em verso: “São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba”.
A segunda parte do livro é centrada na produção artesanal do queijo da Serra da Canastra, na luta dos produtores contra o preconceito e o reconhecimento da qualidade e importância cultural do laticínio, por meio de diversos prêmios internacionais e políticas públicas de preservação.
A fama do queijo mineiro produzido na Região da Serra da Canastra já era reconhecida nos tempos de Saint-Hilaire, o mais notório viajante estrangeiro a passear pelo Brasil no século 19: “Estes queijos, aos quais não se dá outro nome mais do que queijo de Minas, são muito afamados: sua substância é compacta; a cor assemelha-se aos dos queijos de gruyères, mas é, eu creio, de um amarelo mais carregado; seu gosto é doce e agradável”.
Mais de um século depois, pouco mudou. O Canastra legítimo é fabricado a partir de leite de vaca integral cru, recém-ordenhado e filtrado, produzido e processado na propriedade de origem. A restrição à adição de leite coletado em outros locais é um diferencial, garantindo personalidade própria a cada fazenda e, consequentemente, a cada queijo. Ao leite é adicionado o coalho, a cultura láctea natural (o chamado “pingo”) e o sal. O coalho é uma mistura de enzimas que, ao ser adicionada ao leite, produz a primeira etapa de formação do queijo, a coagulação.
Por muito tempo, queijo Canastra e queijo Minas foram quase sinônimos. Mas, embora o modo de fazer seja semelhante em várias regiões do Estado, apenas os queijos produzidos nos nove municípios da microrregião Canastra, entre eles São Roque de Minas, Medeiros e Delfinópolis, podem se orgulhar de fazer o legítimo Canastra.
Um orgulho que chegou com o tempo. O desenvolvimento da produção artesanal de leite em Minas sofreu um baque nos anos 1950, com uma legislação sanitarista feita para beneficiar a grande produção industrial em detrimento do pequeno produtor artesanal. Como resultado, os produtores que ainda insistiam na produção de queijo eram perseguidos, com lotes inteiros do produto apreendidos e destruídos. A volta por cima ocorreu há pouco mais de 20 anos, com as primeiras leis voltadas para a proteção da fabricação artesanal, seguida pelo reconhecimento de sua importância para a cultura e a identidade mineira. Primeiro pelo Estado, em 2002, e, em 2008, como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.
Outros modos de preparo de alimentos já obtiveram o reconhecimento internacional. A torcida pelo título da Unesco foi muito grande. Com os votos do Comitê Intergovernamental da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, divulgados no fim da manhã do dia 4 de dezembro, os “Modos de Fazer Queijo Minas Artesanal” agora faz companhia à “Arte do ‘Pizzaiolo’ napolitano” e ao “Café Árabe” na lista da Unesco.
Publicado pela Bushido Editorial, e escrito a quatro mãos, o lançamento reedita uma parceria de sucesso entre os escritores Guilherme Aragão e Conrado Moreira, autores de “Estradas de Minas” e “Vinhos e Artes”. “Nosso livro vem em boa hora, justamente quando o queijo mineiro alçou outro patamar de reconhecimento, desta vez mundial. Mas nós, como bons mineiros, sabemos há muito tempo que, igual ao queijo de Minas, não tem em lugar nenhum!”, comenta o autor Conrado Moreira.
Canastra – Queijos de Histórias foi publicado com recursos da Lei Federal de Incentivo à Cultura, Pronac 212235, e contou com patrocínio do Grupo Amep.